As cores
Maria Alice abandonou o livro onde seus dedos longos liam uma história de amor. Em seu pequeno mundo de volumes, de cheiros, de sons, todas aquelas palavras eram a perpétua renovação dos mistérios em cujo seio sua imaginação se perdia. […] Como seria cor e o que seria? […]. Era, com certeza, a nota marcante de todas as coisas para aqueles cujos olhos viam, aqueles olhos que tantas vezes palpara com inveja calada e que se fechavam, quando os tocava, sensíveis como pássaros assustados, palpitantes de vida, sob seus dedos trêmulos, que diziam ser claros. Que seria o claro, afinal? Algo que aprendera, de há muito, ser igual ao branco. […]
E agora Maria Alice voltava outra vez ao Instituto. E ao grande amigo que lá conhecera. […]. Lembrava-se da ternura daquela voz, da beleza daquela voz. De como se adivinhavam entre dezenas de outros e suas mãos se encontravam. De como as palavras de amor tinham irrompido e suas bocas se encontrado… De como um dia seus pais haviam surgido inesperadamente no Instituto e a haviam levado à sala do diretor e se haviam queixado da falta de vigilância e moralidade no estabelecimento. E de como, no momento em que a retiravam e quando ela disse que pretendia se despedir de um amigo pelo qual tinha grande afeição e com quem se queria casar, o pai exclamara, horrorizado:
— Você não tem juízo, criatura? Casar-se com um mulato? Nunca!
Mulato era cor. Estava longe aquele dia. Estava longe o Instituto, ao qual não saberia voltar, do qual nunca mais tivera notícia, e do qual somente restara o privilégio de caminhar sozinha pelo reino dos livros, tão parecido com a vida dos outros, tão cheio de cores…
LESSA, O. Seleta de Orígenes Lessa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
No texto, a condição da personagem e os desdobramentos da narrativa conduzem o leitor a compreender o(a):
a) percepção das cores como metáfora da discriminação racial.
b) privação da visão como elemento definidor das relações humanas.
c) contraste entre as representações do amor de diferentes gerações.
d) prevalência das diferenças sociais sobre a liberdade das relações afetivas.
e) embate entre a ingenuidade juvenil e a manutenção de tradições familiares.

📚 Matérias Necessárias para a Solução da Questão: Interpretação de texto, Figuras de Linguagem, Metáfora, Crítica social, Análise de discurso.
📊 Nível da Questão: Médio
📝Tema/Objetivo Geral: Interpretar o uso simbólico das cores e compreender como a narrativa denuncia o preconceito racial por meio da experiência subjetiva da personagem.
🎯 Gabarito: A
Passo 1: Análise do Comando e Definição do Objetivo
O enunciado pede que o leitor compreenda como a condição da personagem e os acontecimentos da narrativa levam a uma determinada compreensão. Em outras palavras, é necessário interpretar o efeito da cegueira de Maria Alice sobre sua visão de mundo, suas experiências afetivas e sociais — e como isso se conecta ao significado simbólico das cores, ao preconceito racial e à discriminação.
O objetivo da questão, portanto, é identificar qual interpretação mais profunda se revela a partir da forma como a personagem vivencia o mundo e se depara com o preconceito racial, especialmente a partir da fala do pai.
Passo 2: Explicação de Conceitos Necessários
📌 Metáfora: Figura de linguagem que estabelece uma relação simbólica entre ideias. No texto, a cor não é apenas percepção visual, mas representa a forma como a sociedade julga e separa as pessoas.
📌 Cegueira e Imaginação: Maria Alice é cega, mas vive intensamente através da imaginação, dos livros e da sensibilidade com que percebe o mundo.
📌 Racismo como construção social: A fala do pai revela um preconceito enraizado — ele julga o amigo da filha pela cor, não pelo caráter ou sentimentos envolvidos.
📌 “Mulato era cor”: Essa frase é essencial. Maria Alice não via cor, mas sentia afeto. Ao dizer que “mulato era cor”, o narrador denuncia o absurdo de se reduzir uma pessoa a uma característica superficial, visual e excludente.
Passo 3: Interpretação e Tradução do Texto
Maria Alice vive no “reino dos livros”, um espaço onde ela experimenta o mundo de forma subjetiva, sensível e profunda. Por ser cega, ela não vê as cores, mas ouve, sente, toca — e ama. Ao se apaixonar por um colega do Instituto, ela ignora barreiras visuais e sociais.
Porém, seus pais a retiram de lá quando descobrem o envolvimento com um “mulato”. O pai se revolta ao saber que ela quer casar com alguém negro, e esse momento expõe o contraste entre a pureza do sentimento de Maria Alice e o preconceito social dos pais.
Ao final, a personagem, já afastada do Instituto e do amado, continua imersa nos livros e no pensamento: o mundo das cores está associado à exclusão, mesmo que ela não as veja. Ou seja, a “cor” aqui adquire um sentido simbólico de discriminação racial.
Passo 4: Desenvolvimento do Raciocínio
✔ A cegueira da personagem funciona como uma metáfora poderosa: por não enxergar, ela é livre de preconceitos visuais e ama com sinceridade, guiada apenas pela voz, pela ternura, pelas palavras.
✔ O conflito com o pai revela que o problema não está no amor da filha, mas no preconceito social que a cerca — um preconceito que reduz uma pessoa à sua cor, como se isso fosse justificativa para impedir um relacionamento.
✔ Assim, a narrativa questiona a forma como a sociedade enxerga o outro — e como essa “visão” está carregada de preconceitos.
Passo 5: Análise das Alternativas e Resolução
A) Percepção das cores como metáfora da discriminação racial ✅
→ Correta! A cor “mulato” é citada como um fator que impede o relacionamento. Maria Alice, por ser cega, não entende o peso dessa “cor” como os outros — para ela, cor não é critério. A narrativa denuncia o racismo como algo socialmente construído.
B) Privação da visão como elemento definidor das relações humanas ❌
→ Errado. A privação da visão é importante, mas não é o centro da narrativa — o que define as relações não é a cegueira em si, e sim a visão preconceituosa dos outros.
C) Contraste entre as representações do amor de diferentes gerações ❌
→ Há um conflito com os pais, mas o ponto central não é o amor entre gerações, e sim o preconceito racial envolvido na rejeição do pai.
D) Prevalência das diferenças sociais sobre a liberdade das relações afetivas ❌
→ O problema aqui não é classe social, mas sim preconceito racial, representado na frase “mulato era cor”.
E) Embate entre a ingenuidade juvenil e a manutenção de tradições familiares ❌
→ Também não é esse o foco. A questão não trata da ingenuidade de Maria Alice, mas da forma pura e verdadeira como ela ama, em contraste com o racismo do pai.
Passo 6: Conclusão e Justificativa Final
📌 A cegueira da personagem funciona como uma metáfora contra o preconceito: ela ama com liberdade porque não enxerga cores — ou seja, não julga pela aparência. Já o pai, guiado pelos valores racistas da sociedade, recusa o relacionamento baseado exclusivamente na cor da pele do rapaz.
🔍 Resumo Final:
O texto utiliza a cegueira de Maria Alice para denunciar o preconceito racial. A percepção de “cor” é simbolizada como o elemento que separa, exclui e impede o amor. Por isso, a alternativa correta é a letra A: a percepção das cores como metáfora da discriminação racial.