Enquanto estivemos entretidos com os urubus outras coisas andaram acontecendo na cidade. A Companhia baixou novas proibições, umas inteiramente bobocas, só pelo prazer de proibir (ninguém podia cuspir pra cima, nem carregar água em jacá, nem tapar o sol com peneira, como se todo mundo estivesse abusando dessas esquisitices); mas outras bem irritantes, como a de pular muro pra cortar caminho, tática que quase todo mundo que não sofria de reumatismo vinha adotando ultimamente, principalmente os meninos. E não confiando na proibição só, nem na força dos castigos, que eram rigorosos, a Companhia ainda mandou fincar cacos de garrafa nos muros. Achei isso um exagero, e comentei o assunto com mamãe. Meu pai ouviu lá do quarto e veio explicar. Disse que em épocas normais bastava uma coisa ou outra; mas agora a Companhia não podia admitir nenhuma brecha em suas ordens; se alguém desobedecesse à proibição podia se cortar nos cacos; se alguém conseguisse pular um muro quebrando era apanhado pela proibição, nhoc – e fez o gesto de quem torce o pescoço de um frango.
VEIGA, J. J. Sombras de reis barbudos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
Sob a perspectiva do menino que narra, os fatos ficcionais oferecem um esboço do momento político vigente na década de 1970, aqui representado pelo
a) culto ao medo, infiltrado em situações do cotidiano.
b) sentimento de dúvida quanto à veracidade das informações.
c) ambiente de sonho, delineado por imagens perturbadoras.
d) incentivo ao desenvolvimento econômico com a iniciativa privada.
e) espaço urbano marcado por uma política de isolamento das crianças.

Resolução em Texto
Matérias Necessárias para Solução da Questão:
- Interpretação de texto
- Contexto histórico e político (década de 1970 no Brasil)
- Literatura brasileira (elementos ficcionais e narrativos)
Nível da Questão (ENEM): Médio
Gabarito: letra A
1º Passo: Análise do Comando e Definição do Objetivo
O comando da questão pede para identificarmos como o texto ficcional oferece um esboço do momento político vigente na década de 1970, a partir da perspectiva do menino narrador.
Frase-chave do comando: “os fatos ficcionais oferecem um esboço do momento político vigente na década de 1970.”
Objetivo: Determinar qual elemento narrado no texto melhor reflete o contexto político do Brasil na década de 1970, especialmente no que diz respeito ao autoritarismo e repressão, características marcantes do regime militar.
Dica Geral: O texto utiliza metáforas e situações do cotidiano para representar aspectos sociais e políticos do período. Fique atento aos elementos que indicam controle, repressão ou medo.
2º Passo: Interpretação do Texto
Agora vamos analisar as principais passagens do texto e identificar como elas se conectam ao contexto político da década de 1970:
- “A Companhia baixou novas proibições, umas inteiramente bobocas, só pelo prazer de proibir.” o Este trecho sugere um excesso de regras impostas sem necessidade ou justificativa plausível, refletindo o autoritarismo característico da época.
- “A Companhia ainda mandou fincar cacos de garrafa nos muros.” o Aqui, a narrativa indica um aumento da repressão e a busca por formas mais severas de controle, mesmo que isso resulte em consequências negativas para os cidadãos.
- “Meu pai ouviu lá do quarto e veio explicar. Disse que em épocas normais bastava uma coisa ou outra; mas agora a Companhia não podia admitir nenhuma brecha em suas ordens.” o A explicação do pai revela um ambiente de vigilância extrema, em que qualquer descumprimento das regras era tratado de forma rígida, refletindo a intolerância à desobediência no regime militar.
- “Se alguém desobedecesse à proibição podia se cortar nos cacos.” o A metáfora dos cacos de vidro ilustra a violência e o controle autoritário como formas de punir quem ousasse questionar ou desobedecer às ordens impostas.
Essência do texto: A narrativa ficcional utiliza metáforas e situações aparentemente cotidianas para representar o autoritarismo e o culto ao medo instaurados pela ditadura militar brasileira, marcados pela repressão, vigilância e imposição de regras excessivas.
3º Passo: Explicação dos Conceitos Necessários
Para compreender o contexto político e literário do texto, vamos explorar alguns conceitos fundamentais:
- Regime militar no Brasil (1964-1985): Caracterizado por repressão política, censura, vigilância e controle rigoroso da população. Era comum a imposição de regras arbitrárias e punições severas para quem as desobedecesse.
- Metáfora: O texto utiliza a Companhia como uma representação do governo autoritário, enquanto as proibições e os cacos de vidro simbolizam o controle excessivo e a violência do período.
- Culto ao medo: O medo é utilizado como ferramenta de controle social, garantindo que as pessoas obedeçam às regras para evitar punições.
- Ficcional: Algo que é fruto da imaginação, que não ocorreu na realidade, mas que pode se inspirar em fatos ou contextos reais. O texto, por ser ficcional, usa elementos criados pelo autor (como a Companhia) para fazer referência indireta ao regime vigente da época.
- Vigente: Significa algo que está em vigor, que é atual ou que era válido em determinado período. No caso do texto, o regime militar era o sistema político vigente no Brasil durante a década de 1970, marcado por controle e repressão.
4º Passo: Análise das Alternativas
Agora, vamos analisar cada alternativa com base no texto e no contexto político da época:
A) Culto ao medo, infiltrado em situações do cotidiano.
- Análise: Esta é a alternativa correta. O texto utiliza metáforas para representar o medo instaurado pela Companhia (governo autoritário), que impõe regras desnecessárias e severas, como os cacos de vidro, para garantir o controle e a obediência. O medo de punições reflete o ambiente político da ditadura militar. Conclusão: Alternativa correta.
B) Sentimento de dúvida quanto à veracidade das informações.
- Análise: O texto não explora dúvidas ou incertezas sobre as informações. O foco está na repressão e no controle, e não na desconfiança em relação às notícias ou às proibições. Conclusão: Alternativa incorreta.
C) Ambiente de sonho, delineado por imagens perturbadoras.
- Análise: Embora o texto utilize metáforas, ele não cria um ambiente de sonho ou surreal. As imagens descritas são concretas e remetem a situações reais de repressão e controle. Conclusão: Alternativa incorreta.
D) Incentivo ao desenvolvimento econômico com a iniciativa privada.
- Análise: Não há menção no texto a desenvolvimento econômico ou iniciativas privadas. A Companhia é uma representação do controle estatal e autoritário, e não de esforços econômicos. Conclusão: Alternativa incorreta.
E) Espaço urbano marcado por uma política de isolamento das crianças.
Análise: Embora o texto mencione a proibição de pular muros, o foco não está no isolamento das crianças, mas no controle autoritário sobre a população em geral.
5º Passo: Conclusão e Justificativa
A alternativa correta é a A) Culto ao medo, infiltrado em situações do cotidiano, pois o texto utiliza metáforas para representar o medo instaurado pelo governo autoritário durante a ditadura militar, evidenciado pela imposição de regras rigorosas e pelo uso da violência como forma de controle.
Resumo Final
A narrativa de João Ubaldo Ribeiro utiliza situações cotidianas e metáforas para retratar o ambiente político da década de 1970, marcado pelo autoritarismo e pelo culto ao medo. A Companhia, com suas regras arbitrárias e punições severas, reflete a repressão e o controle do regime militar, que utilizava o medo como ferramenta de obediência.