Era um gato preto, como convinha a um cultor das boas letras, que já lera Poe traduzido por Baudelaire. Preto e gordo. E lerdo. Tão gordo e lerdo que a certa altura observei que ia perdendo inteiramente as qualidades características da raça, que são em suma o ódio de morte aos ratos. Já nem os afugentava! Os ratos de Ouro Preto são também dignos e solenes — não ria — tradicionalistas… descendentes de outros ratos que naqueles mesmos casarões presenciaram acontecimentos importantes da nossa história… No sobrado do desembargador Tomás Antônio Gonzaga, imagine o senhor uma reunião dos sonhadores inconfidentes, com os antepassados daqueles ratos a passearem pelo sótão ou mesmo pelo assoalho por entre as pernas dos homens absortos na esperança da independência nacional! E depois, os ancestres daqueles roedores que eu via agora deslizar sutilmente no meu quarto podiam ter subido pelo poste da ignomínia colonial, onde estava exposta a cabeça do Tiradentes! E quando as órbitas se descarnaram ignominiosamente, podiam até ter penetrado no recesso daquele crânio onde verdadeiramente ardera a literatura, com a simplicidade do heroísmo, a febre nacionalista…
Descrevendo seu gato, o narrador remete ao contexto e a protagonistas da Inconfidência para criar um efeito desconcertante centrado no
a) desenho imaginativo do casario colonial de Ouro Preto.
b) efeito de apagamento de limites entre ficção e realidade.
c) vínculo estabelecido entre animais urbanos e literatura.
d) questionamento sutil quanto à sanidade dos inconfidentes.
e) contraste entre austeridade pomposa e imagem repugnante.

Resolução em Texto
Matérias Necessárias para a Solução da Questão
- Interpretação de Texto
Nível da Questão: Difícil
Gabarito: E
1º Passo: Análise do Comando e Definição do Objetivo
O comando da questão solicita a identificação do efeito desconcertante presente no texto. Para isso, é necessário interpretar como o narrador combina a descrição do gato, dos ratos e do contexto histórico da Inconfidência Mineira para criar esse efeito.
Objetivo: Analisar como o texto contrapõe elementos históricos e heróicos com imagens asquerosas, desconstruindo a seriedade do contexto narrado.
2º Passo: Interpretação do Texto
O narrador inicia descrevendo seu gato, associando-o a características típicas de um caçador de ratos, mas ele é apresentado como gordo, lerdo e incapaz de cumprir essa função. A narrativa, então, insere os ratos no contexto histórico de Ouro Preto, associando-os à Inconfidência Mineira.
O texto destaca que esses ratos poderiam ser descendentes de roedores que testemunharam reuniões históricas e até penetraram no crânio de Tiradentes. Essa passagem conecta a imagem degradante dos ratos ao heroísmo nacionalista e à literatura, criando um contraste que causa um efeito desconcertante.
3º Passo: Análise das Alternativas
A) Desenho imaginativo do casario colonial de Ouro Preto.
O termo “casario” refere-se ao conjunto de casas típicas de uma região, geralmente associado a um estilo arquitetônico característico, como o colonial de Ouro Preto. Embora o texto mencione o cenário histórico de Ouro Preto, com casarões e espaços icônicos como o sobrado de Tomás Antônio Gonzaga, essas descrições não são detalhadas a ponto de formar um “desenho imaginativo”. O objetivo do texto não é pintar uma imagem vívida do local, mas criar um contraste entre a grandiosidade histórica e os elementos grotescos da narrativa, como os ratos que “passeiam” pelos mesmos espaços.
B) Efeito de apagamento de limites entre ficção e realidade.
O narrador mistura elementos históricos e fictícios, mas isso não é o ponto central da questão. A narrativa é claramente marcada por exageros e devaneios, mas o objetivo principal não é questionar os limites entre ficção e realidade. O foco está no contraste entre o que é grandioso e o que é grotesco, e não em confundir ou apagar essas categorias.
C) Vínculo estabelecido entre animais urbanos e literatura.
Embora o narrador faça conexões entre os ratos de Ouro Preto e momentos importantes da literatura e da história (como a cabeça de Tiradentes e a reunião dos inconfidentes), o texto não tem como foco estabelecer um vínculo significativo entre animais urbanos e literatura. Esses elementos são usados para criar uma atmosfera desconcertante e destacar a deterioração simbólica de valores históricos.
D) Questionamento sutil quanto à sanidade dos inconfidentes.
A relação entre o rato e os inconfidentes pode ser vista como uma metáfora para a perda de características essenciais, algo que também pode ser associado aos inconfidentes, que estavam “perdendo suas qualidades características”, de certo modo. O rato, na sua decadência e incapacidade de agir como um “rato verdadeiro”, passa a ser comparado aos inconfidentes, que, ao buscar a independência, também podem ser vistos como tendo perdido, ou desvirtuado, suas qualidades nobres ou revolucionárias. Essa comparação não é explícita, mas está sugerida no texto, criando uma conexão indireta entre a perda de identidade do rato e a “desvirtuação” dos ideais dos inconfidentes, sugerindo uma crítica sutil à decadência das ideias e das ações de figuras históricas. No entanto, não é isso que causa o efeito desconcertante no texto, mas sim o contraste entre grandeza histórica e imagens repulsivas.
E) Contraste entre austeridade pomposa e imagem repugnante.
Alternativa correta. O termo “austeridade pomposa” refere-se à combinação de rigor e seriedade com uma grandiosidade exagerada, como a que se associa ao cenário da Inconfidência Mineira e aos casarões coloniais de Ouro Preto. O texto cria um contraste intencional ao opor essa imagem histórica grandiosa à degradação dos ratos, que simbolizam decadência e repulsa. Esse contraste é o cerne da narrativa e é o que gera o efeito asqueroso e desconcertante mencionado no comando da questão.
4º Passo: Conclusão e Justificativa
A alternativa correta é E) Contraste entre austeridade pomposa e imagem repugnante. O texto contrasta a seriedade e a grandiosidade dos eventos históricos da Inconfidência com a imagem asquerosa do rato, criando um efeito desconcertante. Ao associar um tema nobre com uma figura repugnante, o autor provoca uma reflexão sobre a disparidade entre o heroísmo idealizado e a realidade vulgar.
Resumo: O contraste entre a grandeza histórica e a imagem repulsiva do rato é o recurso que desconcerta o leitor, ressaltando a discrepância entre a ideia de heroísmo e os aspectos mais desprezíveis da realidade.